"Governo deve negociar novo OE se houver chumbo na AR"
Agora que são conhecidos os dados da execução orçamental até Agosto, acredita que ainda é possível cumprir a meta dos 7,3% de défice sem medidas adicionais ou receitas extraordinárias? Sem novas medidas será difícil. Agora, se é possível acredito que sim – sou sempre dos que acreditam, desde que haja vontade, todas as coisas se podem conseguir. Se houver vontade política para isso, julgo que é possível cumprir o objectivo do défice até ao final do ano. Agora, vai ser preciso mais acção.
De que tipo de medidas podemos estar a falar? Com tão poucos meses pela frente há opções fiáveis? Opões há sempre – aumento de receita ou corte da despesa. E sobre isso não há um juízo técnico, esse juízo é sempre político, porque depende das funções de preferência dos decisores. Podem juntar-se, do ponto de vista técnico, argumentos de eficiência: eu estou convencido que é mais eficiente, nomeadamente em função do médio-longo prazo, cortar a despesa do que aumentar a receita. Porque aumentar a receita contraria os incentivos à criação de riqueza e a diminuição de despesa, entre outras coisas, diminui alguns desperdícios que a economia tem – e que o Estado executa – e que poderão ser usados de forma mais produtiva.
Tem-se falado de um eventual corte no subsídio de Natal na função pública, como solução de último recurso. Acredita que vamos ter que chegar aí? Mais uma vez, as opções são aumento da receita , corte na despesa ou uma mistura das duas. E dentro desta última, é olhar para toda a estrutura de despesa. As mais importantes, as que pesam mais no Orçamento são as despesas sociais e as despesas com remunerações. Essas são aquelas onde há mais espaço para produzir efeitos. Há outro campo – que leva mais tempo e sobretudo não é exequível até ao final do ano – que é alguma reorganização da máquina do Estado. Porque no Estado há hoje muitas funções redundantes. Aquilo que no universo empresarial já teria sido feito era concentrar aquilo que chamamos de ‘back-office’, de vários serviços que podem ser partilhados, desde contabilidades a serviços de pessoal, que todos os serviços do Estado temo seu próprio – e isto podia perfeitamente ser reorganizado, para haver uma unidade de serviços partilhados que servisse vários departamentos ao mesmo tempo. É claro que isto tem como consequência – que é o que acontece sempre nas empresas – que se geram recursos humanos excedentários e eles têm que ser despedidos. Ora, isto no Estado é impossível. Agora, nós estamos a fazer confluir várias impossibilidades: de fazer descer a despesa, de aumentar os impostos, de despedir. E vai haver uma impossibilidade de financiar. E quando houver impossibilidade de financiar, uma das outras impossibilidades vai ter que ser derrubada. E portanto é bom que se pense com tempo onde é que se quer actuar de forma estrutural e de forma duradoura.
Na justificação para o evoluir das contas do Estado deste ano, o Ministério das Finanças assume que não fossem as transferências para a Segurança Social, mas também para o SNS, a despesa do Estado teria até diminuído. O Estado Social já atingiu os seus limites? Primeiro, o que diz é que se a despesa não tivesse aumentado, a despesa não teria aumentado. É o que essa justificação diz…
O Ministério fala de despesa acima do previsto… Isso é uma tautologia. Mas é um facto, e um facto a que anda toda a gente a tentar fechar os olhos, é que o modelo social que temos é financeiramente insustentável a prazo. De maneira que faz todo o sentido pensar em racionalizá-lo – e no fundo fazer como que a negociação de um novo contrato social, entre a sociedade, vendo o que é preciso redistribuir, ver quem devem ser os principais beneficiários desse processo, concentrar neles a distribuição. E, por outro lado, que é outra parte do contrato social, criar condições para se gerar mais riqueza. Porque quanto mais riqueza houver, mais fácil é redistribuir. Nós hoje estamos num problema – que dura há mais de uma década – é que crescemos cada vez menos e distribuímos cada vez mais. E isto não é preciso ser economista para perceber: quando o bolo não cresce, quanto mais fatias se partir do bolo, mais pequenina vai ser cada fatia – e mais gente vai ficar descontente. O que é necessário é fazer crescer o bolo, e isso é difícil (não há soluções de curto-prazo); e por outro lado é preciso diminuir o número de comensais, para que àqueles que são verdadeiramente necessitados lhes possa chegar algo que faça sentido.
Volto à execução orçamental. Há justificações do MF para o aumento da despesa com pessoal, nomeadamente o novo quadro remuneratório das forças de segurança e sobretudo dos professores. É possível nesta conjuntura governar em minoria? Possível é sempre. É preciso que haja medidas a aplicar… esses aumentos de despesa que cita, quem é que os decidiu? Eles não caíram do céu! Possível é tudo, desde que haja vontade política de executar aquilo que é difícil. Independentemente de os governos serem maioritários ou minoritários, quando não se quer desagradar é obvio que é sempre difícil…
É uma solução original na Europa, um dos únicos parlamentos europeus sem uma solução maioritária. Não é uma solução cara? Está bem, e isso quer dizer que as pessoas deviam ter votado maioritariamente? As pessoas votaram o que votaram. Compete aos agentes políticos encontrar as soluções convenientes, que podem ser de várias formas – desde governos de coligação a acordos parlamentares. Isto tentou fazer-se? Não sei. Portanto, as coisas são o que são, o governo é o que é, e o Governo tem a responsabilidade de governar, ou então dizer que não consegue.
Quando os sinais de alarme voltam a disparar, faz sentido voltarmos a falar de formar um bloco central? Eu julgo que faz sentido pensar em soluções que tenham exequibilidade. Desde que fui dirigente da Sedes que me bati por uma solução consensualizada em Portugal, alargada, que passasse por um governo alargado ou, pelo menos, por um pacto sócio-político muito alargado (que envolvesse os partidos políticos do arco da governação e as principais forças sociais), para fazer aquilo que poderia chamar um pacto para o crescimento, emprego e equidade social, que garantisse condições de sustentabilidade no médio e longo prazo. Tenho-me batido por isso civicamente. Não acho que as condições tenham mudado relativamente a essa necessidade, que se mantém. Agora, se há condições políticas e vontade política para isso acontecer, isso não sei. Aliás, uma das coisas que eu temo – e eu sei que o que vou dizer é arrojado e provavelmente exagerado, mas não quero deixar de o dizer – é que o sistema político não consiga gerar soluções para os nossos problemas.
E isso leva-nos onde? Não sei. Quer dizer, a solução acabará por surgir de qualquer lado, pode surgir de forma… mais custosa. Podemos ter que passar por custos mais elevados antes de a solução surgir.
Vem aí um Orçamento que todos dizem decisivo. Há hipóteses de ele ser chumbado. Num artigo recente, escreveu que o chumbo não seria necessariamente uma coisa dramática. Porquê? A razão porque escrevi esse artigo foi porque me pareceu que estava a ser criado, ao nível do comentário dominante, a ideia de que a responsabilidade de fazer passar o Orçamento era da oposição. E que, se a oposição não o aprovasse, o Governo não teria condições de governar. Ora bem, isso é uma inversão das regras do jogo democrático. O jogo democrático não é assim! Quem tem obrigação de governar é o Governo, quem tem a obrigação de criar condições, de negociar soluções que a oposição possa aprovar, em situação de minoria, é o Governo. E se não houver solução de consenso, o Governo não pode dizer que não pode governar, porque constitucionalmente a regra é que tem que governar com o Orçamento anterior, em regime de duodécimos. De resto, não teria nada de novo: este ano foi governado em duodécimos até Maio. E viver em duodécimos não obriga que seja até ao final do ano. Significa que, se o OE não for aprovado num prazo normal, se deve continuar a negociar um novo orçamento e, até lá, aplica-se esse regime. Que, aliás, daria melhor resultado do que deu este ano – porque a despesa nominal não poderia ter aumentado como aumentou este ano. O Governo não teria autorização para gastar o que gastou este ano.
Mas este ano, quando estivemos em duodécimos, até Maio, as taxas de juro sobre a dívida portuguesa ainda não tinham disparado e ainda não se falava de termos o FMI à porta. E a questão é até que ponto um chumbo do OE, este ano, não levará a que voltem esses sinais de alarme… Deixe-me traduzir a sua pergunta de uma forma mais conveniente para a minha resposta: se o regime de duodécimos é suficiente para lidarmos com os problemas que temos pela frente. Não, não é. Porque não garante a redução do défice para os compromissos assumidos, relativamente ao PEC. Vai ser preciso mais do que isso. O que significa é que o governo não deixa de ter condições de governabilidade – ele é obrigado a governar naquele regime, tem é que ir mais longe.
Mas o chumbo do Orçamento não seria um sinal perigoso? Sim, é. Mas convém termos presente que a responsabilidade não está apenas de um lado. Porque se fizermos isso estamos a criar condições, para além de subvertermos as regras do jogo… para que seja se calhar mais difícil que exista uma solução conveniente. O governo terá, até lá, de negociar as condições de aceitação por parte da oposição. Eu julgo que não é possível exigir-se que a oposição assuma as responsabilidades de governo sem ter benefícios de governo. Agora, de facto, nós temos uma exigência muito grande pela frente e essa exigência tem que ser cumprida. Pelas minhas contas, julgo que vai ser necessário conseguir um esforço adicional que pode chagar aos mil milhões de euros.
E isso é possível sem novo aumento da carga fiscal? É, porque convém ter presente que as decisões que já estão tomadas sobre o PEC2 – os aumentos de impostos decididos durante 2010 – já implicam um aumento de receita perto de 1,5% do PIB. Os impostos em 2011 já vão aumentar em virtude de decisões já tomadas, pelo que julgo que se devia procurar uma solução que não obrigasse a aumentar ainda mais os impostos. Não é sustentável este nível de despesa pública, porque estamos a desviar recursos da economia para actividades que não são produtivas. Insisto no ponto: se o bolo não cresce e cada vez há menos fatias, qualquer dia só há migalhas.
Nos últimos dias os juros cobrados sobre a dívida portuguesa voltam a níveis recorde. Queria perguntar-lhe se é responsabilidade da oposição que não garante a aprovação do OE ou do Governo que não corta na despesa. Julgo que é as duas coisas. Mas as consequências de uma governação – boas e más – são do Governo em primeiro lugar. Os governos colhem os louros das coisas boas que fazem e assumem a responsabilidade pelas menos boas. Não podem dividir responsabilidade com terceiros. Quem tem que criar condições de governabilidade, condições para que o próximo orçamento seja aprovado, é o Governo, não são terceiros.
Não tem visto no Governo essa vontade, essa disponibilidade? Não tenho visto acções suficientemente decididas para enfrentar o problema. A narrativa oficial que existe não coincide com a visão que tenho da realidade. Há uma dissonância entre a realidade…. O que vejo é uma narrativa que não encontra consistência na realidade. Nós temos uma realidade muito difícil pela frente, não vamos conseguir superar as dificuldades, sem passar por um, dois, três anos de vida difícil. Nós vivemos há 10 anos acima das nossas possibilidades – o que só é sustentável enquanto nos emprestarem dinheiro. O que nós estamos a assistir é que os credores que nos ajudaram a financiar estão a assistir a esta diferença entre a nossa riqueza e o nosso nível de vida e estão a dizer-nos: alto lá, será que nos vão conseguir pagar? Não estamos a conseguir acesso a esse financiamento. E temos que dar garantias aos nossos credores de que vamos arrumar a casa para termos condições de pagar o que eles nos emprestam. Senão deixam de nos emprestar – e aí o orçamento é feito nesse dia: não se gasta. E portanto não podemos andar a iludir as pessoas, a dizer que lhes vamos dar tudo, porque não vai haver condições para isso. Quanto mais cedo começarmos a discutir e consensualizar como se distribuem os sacrifícios melhor. Não podemos é ter a retórica…. percebo que vamos ter eleições…
Fala das presidenciais ou de legislativas? As mais imediatas as presidenciais, mas vive-se num quadro de certa forma eleitoral. E aí a nossa dissonância entre realidade e fantasia aumenta sempre muito. Agora, o Estado social é inegociável? Porque é que não somos francos e dizemos às pessoas: é preciso fazer um ajustamento, vamos tentar fazer um ajustamento que seja o mais justo possível, da forma em que os verdadeiramente necessitados possam ser ajudados e os que têm menos necessidade possam dar um contributo à sociedade?
Esse discurso do Governo pode tirar-lhe credibilidade? Julgo que sim. Podemos alimentar uma ideia fantasiosa da realidade durante algum tempo, mas não a podemos alimentar indefinidamente. As pessoas começam a perceber.
Sendo conselheiro de Estado, traçando um cenário tão difícil da situação portuguesa e temendo que o sistema político não gere soluções… considera que o Presidente da República tem feito o suficiente para alertar para esta situação? Julgo que sim. Daquilo que me é dado ver e que são os poderes que o Presidente tem, ele tem feito o suficiente. Ele tem alertado, com cautelas porque também não pode ter um papel de incendiário relativamente à actuação do Governo. Ele tem que fazer os alertas, mas a responsabilidade de governar pertence ao Governo – quanto muito também à Assembleia. Eu sei que há muita gente que considera que o Presidente deveria ser mais interventivo, mas eu acho que o quadro constitucional e a nossa prática não aponta nesse sentido.